domingo, 20 de maio de 2012

TRATADODA CORREÇÃO DO INTELECTO - Spinoza

[1] Desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer
na vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que temia não
continham em si nada de bom nem de mau senão enqua nto o ânimo se deixava abalar por
elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de
comunicar - se, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afe tado; mais
ainda, se existia algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria
contínua e suprema. [2] Digo que  resolvi enfim  porque à primeira vista parecia insensato
querer deixar uma coisa certa por outra então incerta. De fato, via as comodidades que se
adquirem pela honra e pelas riquezas, e que precisava abster-me de procurá- las, se
tencionasse empenhar - me seriamente nessa nova pesquisa. Verificava, assim, que se, por
acaso, a suprema felicidade consistisse naquelas coisas, iria privar -me delas; se, porém, nelas
não se encontrasse e sóa elas me dedicasse, também careceria da mesma felicidade. [3]
Ponderava, portanto, interiormente se não seria possível chegar ao novo modo de vida, ou
pelo menos à certeza a seu respeito, sem mudar a ordem e a conduta comum de minha
existência, o que te ntei muitas vezes, mas em vão. Com efeito, as coisas que ocorrem mais na
vida e são tidas pelos homens como o supremo bem resumem -se, ao que se pode depreender
de suas obras, nestas três: as riquezas, as honras e a concupiscência. Por elas a mente se vê
tão distraída que de modo algum poderá pensar em qualquer outro bem. [4] Realmente, no
que tange à concupiscência, o espírito fica por ela de tal maneira possuído como se
repousasse num bem, tornando -se de todo impossi bilitado de pensar em outra coisa; mas ,
após a sua fruição, segue-se a maior das tristezas, a qual, se não suspende a mente, pelo
menos a perturba e a embota. Também procurando as honras e a riqueza, não pouco a mente
se distrai, mormente quando são buscadas apenas por si mesmas, porque entã o serão tidas
como o sumo bem. [5] Pela honra, porém, muito mais ainda fica distraída a mente, pois
sempre se supõe ser um bem por si e como que o fim último, ao qual tudo se dirige. Além do
mais, nestas últimas coisas não aparece, como na concupiscência,  o arrependimento. Pelo
contrário, quanto mais qual quer delas se possuir, mais aumentará a alegria e
consequentemente sempre mais somos incitados a aumentá - las. Se, porém, nos virmos
frustrados alguma vez nessa esperança, surge uma extrema tristeza. Por úl timo, a honra
representa um grande impedimento pelo fato de precisarmos, para consegui -la, adaptar a
nossa vida à opinião dos outros, a saber, fugindo do que os homens em geral fogem e
buscando o que vulgarmente procuram.
[6] Como, pois, visse que tudo isso obstava a que me dedicasse ao novo modo de vida,
e, mais ainda, tanto se lhe opunha que eu devia necessariamente abster -me de uma coisa ou
de outra, achava -me forçado a perguntar o que me seria mais útil; porque, como disse,
parecia - me querer deixar um bem certo por um incerto. Mas, depois de me haver dedicado
um tanto a esse ponto, achei em primeiro lugar que se, abandonando tudo, me entregasse ao
novo empreendimento, deixaria um bem por sua natureza incerto, como se depreende
claramente do que foi dito, por um também incerto, ainda que não por sua natureza (pois
buscava um bem fixo), mas apenas quanto à sua obtenção. [7] Entre tanto, mediante uma
assídua meditação, cheguei a verificar que então, se pudesse delibe rar profundamente,
deixaria males certos  por um bem certo. Via -me, com efeito, correr um gravíssimo perigo e
obrigar -me a buscar com todas as forças um remédio, embora incerto; como um doente que
sofre de uma enfermidade letal, prevendo a morte certa se não empregar determinado
remédio, sente -se  na contingência de procurá-lo, ainda que incerto, com todas as forças, pois
que nele está sua única esperança. Em verdade, tudo aquilo que o vulgo segue não só não traz
nenhum remédio para a conservação de nosso ser mas até o impede e freqüentemente é caus a
de morte para aqueles que o possuem e sempre causa de perecimento para os que são
possuídos por isso.
[8] Existem, de fato, muitos exemplos dos que, por causa de suas riquezas, sofre ram a
perseguição até a morte, e também daqueles que, para juntar te souros, se expuse ram a tantos
perigos que afinal pagaram com a vida a pena de sua tolice. Nem menos numerosos são os
exemplos dos que, para conseguir a honra ou defendê-la, muitíssimo sofreram. Por último, há
inúmeros exemplos dos que aceleraram a sua mor te pelo excesso de concupiscência. [9]
Esses males pareciam provir de que toda a felicidade ou infelicidade consiste somente numa
coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual aderimos pelo amor. Com efeito, nunca nascem
brigas pelo que não se ama, nem  haverá tristeza se perece, nem inveja se é possuído por
outro, nem temor nem ódio e, para dizer tudo em uma só palavra, nenhuma comoção da alma;
coisas que acontecem no amor do que pode perecer, como tudo isso de que acabamos de
falar. [10] Mas o amor de u ma coisa eterna e infinita alimenta a alma de pura alegria, sem
qualquer tristeza, o que se deve desejar bastante e procurar com todas as forças. Entretanto,
não é sem razão que usei destes termos: se pudesse seriamente deliberar.  Porque, ainda que
percebesse mentalmente essas coisas com bastante clareza, nem por isso podia desfazer -me
de toda avareza, concupis cência e glória.
[11] Apenas via que, enquanto a mente se ocupava com esses pensamentos, afasta va- se
daqueles e refletia seriamente no novo empree ndimento, o que me servia de grande consolo,
pois percebia que aqueles males não eram de tal espécie que não cedessem aos remédios. E
embora no começo esses intervalos fossem raros e durassem por muito pouco tempo,
tornavam-se mais freqüentes e mais longosdepois que o verdadeiro bem mais e mais me
ficou sendo conhecido; principalmente depois que vi a aquisição de dinheiro ou a
concupiscência e a glória só prejudicarem enquanto são procuradas por si e não como meios
para as outras coisas; se, porém, são bus cadas como meios, terão então uma medida e não
prejudicarão de modo algum, até, pelo contrário, muito contribuirão para o fim pelo qual são
procuradas, como mostraremos no devido lugar.
[12] Aqui só direi breves palavras sobre o que entendo por verdadeirobem e,
juntamente, o que é o sumo bem. Para compreender isso corretamente, note - se que o bem  e o
mal  não se dizem senão relativamente, de maneira que uma mesma coisa pode ser chamada
boa ou má conforme as diversas relações, assim como se dá com  perfeito  ou  imperfeito.
Nada, com efeito, considerado em sua natureza, será dito perfeito ou imperfeito;
principalmente depois de sabermos que tudo o que é feito acontece segundo uma ordem
eterna e conforme leis certas da Natureza. [13] Como, porém, a fraqueza huma na não alcança
aquela ordem pelo seu conhecimento, e, entretanto, o homem concebe al guma natureza
humana muito mais firme que a sua, vendo, ao mesmo tempo, que nada obsta a que adquira
tal natureza, sente -se incitado a procurar os meios que o conduzam a tal perfeição: e tudo o
que pode ser meio para chegar a isso chama -se verdadeiro bem. O sumo bem, contudo, é
chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, se possível, dessa natureza. Qual, porém,
seja ela mostraremos em seu lugar, a saber, o conheci men to da união que a mente tem com
toda a Natureza.
[14] Este é, portanto, o fim ao qual tendo: adquirir uma natureza assim e
esforçar -me por que muitos a adquiram comi go; isto é, pertence também à minha felicidade
fazer com que muitos outros entendam o m esmo que eu, a fim de que o intelecto deles e seu
apetite convenham totalmente com o meu intelecto e o meu apetite. E para que isso
aconteça, é preciso entender tanto da Natureza quanto baste para adquirir semelhante
natureza; a seguir, formar uma tal so ciedade como é desejável para que o maior número
chegue a isso do modo mais fácil e seguro. [15] Cumpre, além disso, dedicar -nos à Filosofia
Moral, bem como à Doutrina da Educação dos meninos; e porque a saúde não deixa de ser
um meio importante para conseguir esse fim, é mister estudar todas as partes da Medicina; e,
ainda, como pela arte se tornam fáceis muitas coisas que são difíceis, podendo nós por ela
ganhar muito tempo e muita comodidade da vida, não se deve desprezar de modo algum a
Mecânica.[16] Antes de tudo, porém, deve excogitar -se o modo de curar o intelecto e
purificá -lo quanto possível desde o começo, a fim de que entenda tudo felizmente
sem erro e da melhor maneira. Donde se poderá já deduzir que quero encaminhar todas as ciências
para um só fim e escopo, a saber, chegar à suma perfeição humana de que falamos; e assim
tudo o que nas ciências não nos leva a nosso fim precisa ser rejeitado como inútil; isto é, para
usar uma só palavra, todas as nossas ações, assim como os pensamentos, hão de ser dirigidos
para esse fim. [17] Mas visto que é necessário viver enquanto cuidamos de o conseguir e nos
esforçamos por colocar o intelecto no caminho reto, somos obrigados antes de tudo a supor
como boas algumas regras de vida, a saber:

I.  Falar ao alcance do vulgo e fazer tudo o que não traz nenhum impedimento
para atingirmos o nosso escopo. Com efeito, disso podemos tirar não pequeno proveito, con -tanto que nos adaptemos, na medida do possível, à sua capacidade; acresce que desse modo
oferecerão ouvidos prontos para a verdade.
II.   Dos prazeres somente gozar quanto basta para a consecução da saúde.
III.  Por último, procurar o dinheiro ou outra coisa qualquer só enquanto chega para
o sustento da vida e da saúde, imitando os costumes da soc iedade que não se opõem a nosso
fim.
[18] Posto isso,dedicar - me -ei à primeira coisa que se deve fazer, ou seja, corri gir o
intelecto, tornando -o apto a compreender as coisas do modo que é preciso a fim de conseguir
o nosso intento. Para tanto, exige a ordem, que naturalmente temos, que aqui resuma todos os
modos de perceber usados por mim até agora para afirmar ou negar al guma coisa sem
dúvida, com o intuito de escolher o melhor de todos e começar ao mesmo tempo a conhecer
as minhas forças e a minha  natureza, a qual desejo aperfeiçoar.
[19] Se olho com cuidado, podem reduzir - se todos a quatro principais.
I.  Existe uma percepção que temos por ouvir ou outro qualquer sinal que
chamam “convencional” (ad placitum:  arbitrário).
II.   Existe uma percepção  originária da experiência vaga, isto é, da experiência
não determinada pelo intelecto, só se dizendo tal porque ocorre por acaso e não vemos
nenhuma outra experiência que a contradiga, e por isso fica como irrecusável entre nós.
III.  Existe uma percepçãona qual a essência de uma coisa é tirada de outra, mas
não adequadamente, o que acontece quando induzimos de algum efeito a causa ou quando
se conclui de um universal que sempre é acompanhado de certa propriedade.
IV.  Por último, existe uma percepção e m que a coisa é percebida por sua essência
unicamente ou por sua causa próxima.

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