sexta-feira, 1 de abril de 2011

Razão: Instrumental e Crítica

"Estamos assistindo hoje, em todo o mundo, a tendências que fazem prever o advento de um novo irracionalismo. Mas ele é mais perturbador que o antigo, porque não está mais associado a posições políticas de direita. A razão não é mais repudiada por negar realidades transcendentes — a pátria, a religião, a família, o Estado —, e sim por estar comprometida com o poder. O novo irracionalismo se considera crítico e denuncia um statu quo visto como hostil à vida. A partir de uma certa leitura de Foucault, Deleuze e Lyotard, e sob a influência de um neonietzscheanismo que vê relações de poder em toda parte, ele considera a razão o principal agente da repressão, e não o órgão da liberdade, como afirmava a velha esquerda.
Ora, sustento que o irracionalismo mudou de rosto, mas não mudou de natureza. Hoje como ontem, só a razão é crítica, porque seu meio vital é a negação de toda facticidade, e o irracionalismo é sempre conformista, pois seu modo de funcionar exclui o trabalho do conceito, sem o qual não há como dissolver o existente.
Mas há um núcleo de verdade no novo irracionalismo: o conceito clássico de razão deve efetivamente ser revisto. Depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma razão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de Weber, não há como ignorar a difeçença entre uma
razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno, não é possível escamotear o lado repressivo da razão, a serviço de uma astúcia imemorial, de um projeto imemorial de dominação da natureza e sobre os homens. Depois de Foucault, não é lícito fechar os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder. Precisamos de um racionalismo novo, fundado numa nova razão.
Numa primeira aproximação, diríamos que o novo racionalismo exige uma razão capaz de crítica e de autocrítica. Ela é capaz de crítica na medida em que reconhece sua competência para lidar com o mundo normativo, desafiando o grande interdito positivista, pelo menos tão antigo quanto Hume, que a condenava
a trabalhar exclusivamente com o mundo dos fatos. Ela submete à sua jurisdição o reino dos valores e avalia a maior ou menor racionalidade das normas. Ela se considera competente, também, para denunciar a desrazão travestida de razão, numa crítica cujo modelo foi fornecido por Marx, quando mostrou a presença na razão oficial de uma relação de poder infiltrada, e por Freud, que nos ensinou a decifrar o desejo nos interstícios do discurso manifesto. E é capaz de autocrítica, na medida em que reconhece sua vulnerabilidade ao irracional: ou o irracional proveniente da falsa consciência — incapacidade socialmente condicionada de conhecer —, ou o irracional sedimentado no inconsciente e que tenta continuamente sabotar a objetividade do pensamento. No fundo, não há diferença entre esses dois limites da razão, como tentei mostrar em outro livro, A Razão Cativa: a coação externa age através dos mecanismos que regulam nossa vida pulsional. A verdadeira razão é consciente dos seus limites, percebe o espaço irracional em que se move e pode, portanto, libertar-se do irracional.
Podemos agora entender a distinção que tracei num dos ensaios deste livro — "Erasmo, pensador iluminista" — entre a razão louca e a razão sábia. A primeira é uma razão que abdica de suas prerrogativas críticas, inclusive da prerrogativa de desmascarar a pseudo-razão, a serviço do poder e do desejo, e é uma razão narcísica, ingênua e arrogante ao mesmo tempo, que, por desconhecer o irracional que a cerca, torna-se presa dele.
A razão sábia é a que identifica e critica a irracionalidade presente no próprio sujeito cognitivo e nas instituições externas, assim como nos discursos que se pretendem racionais — as ideologias. Exponho mais amplamente essa polaridade em palestra qu.e pronunciei sob os auspícios da Funarte — "Razão e paixão"
—, a ser publicada por esta mesma editora.
Mas não basta postular a necessidade da razão sábia: é reciso demonstrar que ela é viável, nas condições contemporâneas. Afinal, seu direito à existência parece ser negado por Foucault,quando disse que toda razão, mesmo a que critica o poder, emana de outro poder, e por Adorno, que afirmou o desaparecimento
no mundo de hoje das últimas reservas de racionalidade crítica." (Rouanet, p.11,12 13)
SÉRGIO PAULO ROUANET  - AS RAZÕES DO ILUMINISMO

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